Capítulo Um

Meio Morto

Morto é como me sinto. Acho escolhi me matar por dentro porque não sentir nada torna as coisas mais fácil. Bem mais fácil. Pelo menos é assim que me engano. E... que diferença faz? Existir é a única coisa que tenho feito. Não viver, existir. Tem uma diferença, mas antes de tudo, não sou um defunto autor ou um autor defunto. Sei que estou vivo, mas me sinto... você sabe. Complexo? Sim e não, depende. Zumbi? Talvez, faz diferença? Não. Antes fazia, hoje não faz mais. O real problema é eu não me lembrar quando eu tomei essa decisão; você simplesmente se acostuma e eu tenha plena convicção que qualquer pessoa que viva no brasil se acostuma com o que quer que seja, mesmo que isso doa, e doa muito. E sim, “brasil”, recuso-me a tratar como nome próprio esse lugar entreguista e subserviente que se diz independente, mas curva-se a menor ameaça. Poderia continuar como Terra dos Papagaios, ou melhor! Das Maritacas! Por quê? É simples, olhe a todos que reclamam e berram em conjuntos, seja no plenário, seja nas manifestações, seja os alunos com alunos ou pais, ou de onde mais você quiser. O uníssono se torna um canto agudo e embaralhado de um bando de maritacas, aliás alguns nem precisam estar em grupo para parecer com uma e quando se cansam voam para outro lugar.

Sei que estou enrolando demais, enfim, só estou conseguindo escrever isso porque meus filhos não estão em casa e assim consigo me desmoronar. Foram duas horas chorando, duas garrafas de vodca e uma de pinga, um quilo de limão e uma playlist cindo horas de música depressiva. Até que foi tranquilo, semana foi pior. Não bebo para esquecer dos meus problemas, mesmo que isso soe contraditório, eu bebo para lembrar deles, mas não vamos nos apresar, vamos ter tempo para falar desses problemas. Vamos falar primeiro das minhas “felicidades”.

Os gêmeos Paulo e Marina estão na frente contra a COVID. Ele está no mestrado de virologia, acho que ajudou a criar a vacina do Butantã e ela é médica, escolheu atuar com cuidados paliativos, conseguiu trabalho no Sírio Libanês no IBCC. Os dois não falam do trabalho, mas pelas olheiras sei que estão acabados, Paulo teve Burnout a umas semanas atrás, soube pela Marina, ele não me contou. João Luís é meu garoto trabalhador, é o mais velho, me ajudou muito a cuidar de todos os outros. Eu detestava que ele fosse trabalhar enquanto os outros faziam faculdade, cursos etc. sempre quis que ele, que sempre esteve ao meu lado, sempre me ajudou, que sempre lutou, estivesse bem melhor do que todo nos juntos. Acho que falhei com ele, aliás não acho, tenho certeza. Ah! A princesa! Ana Catarina, a pequena grande Ana Catarina que nunca fez nada relevante, mas se sente o ser mais importante do mundo. Nunca alguém me deu tanta dor de cabeça, mas nunca vou desistir dela, mesmo bom senso me implorando por isso. É complicado..., mas ela já me deu uma ou duas felicidades. E minha pequena Manu, é a mais nova, ela se parece muito com o João. Se preocupa, faz o que pode, mas é ingênua, chegando ao ponto de fazer coisas que vão machucar ela em prol de outros. Não posso falhar com ela. E por último o Guido, que nem parece que é da família. Saiu de casa cedo, o João e os gêmeos moram aqui no prédio e a Manu e a Ana moram comigo, se formou, se casou, tem o negócio próprio no interior e a esposa, Leonor, está gravida, ele torce para que sejam gêmeos, nunca tive muito contato com ela. E sim, só os gêmeos têm a mesma mãe, meio obvio né?

Eu nunca quis ter filhos, minha mãe por outro lado queria que cada filho tivesse no mínimo cinco, acho que ela ia amar os meus, ia cuidar deles como se fossem dela. Às vezes me pego pensando se o desejo dela não se materializou no meu subconsciente. Éramos quatro, cinco com minha mãe, ela nunca nos contou o que aconteceu com nosso pai, tenho lembranças especificas dele e nunca senti a necessidade de saber o que houve com ele. Ela sempre esteve lá quando eu precisei. Hoje com cinquenta e cinco anos sinto mais falta dela quando tinha dezessete, quando ela se foi. Só tenho duas fotos dela, uma minha e dela quando eu tinha cinco anos e ela me segurava no colo enquanto ria e outra aos dezesseis comigo e meus irmãos. Acho que eles devem ter algumas fotos guardadas, nunca perguntei. Alessandro, meu irmão mais velho morreu sete anos depois no boom da aids, Denis mudou pra Espanha dois anos após a morte do Alessandro e Laura mora em Guarulhos, perto do aeroporto, ela era aeromoça e agora é piloto e eu Já fiz um pouco de tudo, secretario, analista de sistema, uber, atendente de telemarketing, enfermeiro, barman, e mais um monte de coisas que não vou me lembrar agora e hoje sou professor no ensino médio e faculdade , é o melhor trabalho que já tive. Moro na Santa Cilicia e nunca tive vontade de me mudar daqui, consigo ir trabalhar, ajudar em causas sociais e por aí vai. Ver o sorriso de felicidade das pessoas quando o desespero some é uma das coisas que mais me traz conforto, me traz felicidade no que eu faço e na vida. O que eu falei de me sentir meio morto vai e vem, quase três mil mortes por dia, mas alguém que recebeu alta do hospital, não consigo mais ler as notícias sem pelo menos soltar uma lagrima e sinceramente quem inventou essa história que homem não chora não tem ideia do tamanho da imbecilidade que falava. Porem não menti, para sobrevivermos temos que estar insensíveis, ou meio mortos, mas aqui eu vou falar de vida, do que eu passei, passo e posso passar, por isso eu chamei de isso “memorias meio vivas”, a tendência é que com o tempo esqueçamos muito de nossas memorias, o cérebro não suporta armazenar todas, e quero evitar perder o máximo possível delas, mantê-las meio vivas.